Quatro casos -bem diferentes entre eles – que estiveram em foco na sequência do «bail in» de Chipre
Caso I- «O Luxemburgo não é Chipre»
O chefe dos banqueiros do Luxemburgo, o alemão Ernst Contzen que lidera o Deutsch Bank no Grão-Ducado, e Fernand Grulms, responsável da agência para o desenvolvimento do centro financeiro, recusam qualquer colagem a outras praças financeiras na zona euro. Explicaram à Exame a especificidade do“modelo de negócio” da economia luxemburguesa num país onde 20% da população é portuguesa.
(c) Jorge Nascimento Rodrigues no Luxemburgo, 2013
“O Luxemburgo é o centro financeiro da zona euro”, enfatiza Ernst Wilhelm Contzen, CEO do Deutsch Bank Luxembourg e presidente da Associação dos Bancos e Banqueiros do Luxemburgo. “O Luxemburgo não é de todo comparável com Chipre”, reage Contzen, que vive no Grão-Ducado há quinze anos e que dispõe de dupla nacionalidade, alemã e luxemburguesa. “O Luxemburgo é um fornecedor de serviços e de produtos financeiros para o conjunto da Europa e para o resto do mundo. E o seu mercado doméstico, se assim se pode dizer, é o mercado único europeu”, acrescenta o chefe dos banqueiros do pequeno país de pouco mais de 520 mil habitantes em que 110 mil são nossos compatriotas, segundo os registos no consulado português.
Os clientes da praça financeira luxemburguesa são provenientes da União Europeia em 60%. “O sector financeiro do Luxemburgo desempenha um papel chave no fornecimento de financiamento e de liquidez à economia europeia”, sublinha-nos, por seu lado, Fernand Grulms, o luxemburguês que dirige a Luxembourg for Finance, a agência oficial para o desenvolvimento do Centro Financeiro. Os especialistas locais sublinham que enquanto o Chipre desempenha sobretudo o papel de plataforma financeira para um grupo de países muito bem definidos centrados em movimentações de capitais oriundos da Grécia, Rússia (alegadamente a origem estrangeira com maior peso nos depósitos bancários), Ucrânia, Letónia, Bulgária, Roménia, Líbano e Jordânia, o caso do Grão-Ducado é distinto pois é considerado “uma praça financeira global”.
Não somos os próximos
O Luxemburgo subiu à ribalta das notícias sobre a crise na Europa em virtude do atual presidente do Eurogrupo (reunião dos 17 ministros de Finanças dos membros da zona euro), o ministro das Finanças holandês, ter admitido em entrevista ao jornal “Financial Times” e à agência Reuters que o Luxemburgo deveria tirar “lições” do novo modelo de resgate aprovado para Chipre.
A variante de resgate à ilha do Mediterrâneo foi designada por “bail-in”, em que os acionistas, os credores e os próprios depositantes foram chamados a financiar a reestruturação e recapitalização do sector bancário cipriota, o que deixou de cabelos em pé os investidores nas praças financeiras da zona euro e os responsáveis políticos desses países que se especializaram nesse “nicho” económico. Jeroen Dijsselbloem – que ironicamente substituiu recentemente Jean-Claude Juncker, o primeiro-ministro e ministro das Finanças do Luxemburgo, na coordenação do Eurogrupo – avisou, logo, Luxemburgo e Malta que deveriam “tratar do assunto antes que os problemas vos batam à porta”, segundo a transcrição da entrevista. Os dois países seriam os “próximos” na agenda da zona euro de gestão de crises, foi a ideia que, de imediato, surgiu, a par dos problemas na Eslovénia. O holandês deu a entender inclusive que o modelo de “bail-in” passaria a ser a norma, apesar de, mais tarde, vir oficialmente dar o dito por não dito com a frase, já recorrente, de que a solução para Chipre era “única”. “Ele é jovem e terá de ler inclusive os tratados europeus”, riu-se Contzen, referindo-se ao holandês. Grulms, por seu lado, afirma que “os investidores internacionais não se deixam influenciar por tal tipo de comparações”.
Uma economia diversificada
A justificação para o aviso às praças financeiras da zona euro veio embrulhada numa crítica recente ao seu “modelo de negócio”, crítica que não se ouvira quando tais países membros foram fundadores do euro (como o Luxemburgo entre os 11 que em 1999 deram vida à moeda única) ou vieram a ser admitidos no “clube” mais tarde (como Chipre e Malta em 2008). Num caso, vários responsáveis políticos da zona euro falaram explicitamente de suspeitas de se tratar de uma placa de “lavagem” de “dinheiro sujo” – russo, no caso de Chipre – , e em outros de se basear numa “anomalia” de ter um sector financeiro com uma dimensão exagerada em relação ao PIB, acima da “média” europeia de 3,5 vezes. Inclusive construiu-se a ideia de que o Luxemburgo é uma espécie de problema cipriota gigante, pois o conjunto dos ativos financeiros no Grão-Ducado vale quase 22 vezes o produto interno bruto (PIB), enquanto na ilha do Mediterrâneo Oriental era (antes da atual reestruturação bancária) de pouco mais de 7 vezes (ver quadro). Entre 2006 e 2012, aquele rácio inclusive desceu no Luxemburgo de cerca de 30 para 22 vezes.
Para Contzen usar este critério “é absurdo”. “O que conta são a qualidade e estabilidade do sector financeiro” de um dado país, sublinha o CEO do Deutsch Bank Luxembourg, que prossegue: “O argumento da proporcionalidade (face ao PIB) é contrário às próprias aspirações políticas e conceptuais do mercado interno”. E vai mais longe sobre esta “regra recente” de medir os sectores em que as economias da zona euro se especializam em relação ao PIB: “Se a proporcionalidade fosse um critério, então a dimensão da indústria automóvel alemã seria também completamente desproporcionada em relação ao mercado doméstico alemão”. E remata: “Na lógica do mercado interno europeu, é absolutamente normal que um país como o Luxemburgo se especialize na exportação de serviços financeiros, tal como a Alemanha o fez com o sector automóvel”.
A própria “qualidade” do sector financeiro do Luxemburgo é sublinhada por Contzen: “O rácio de solvabilidade da banca situa-se numa média acima de 17%, com um rácio no Core Tier 1 acima de 16%”. Em Chipre desceu desde 2011 para 7%. Frisa ainda que “no Luxemburgo não temos atividades especulativas” e que o peso dos bancos domésticos é diminuto, de cerca de 7%, ao contrário do que sucede com Chipre (onde o peso dos bancos domésticos era de 71%) e outras praças financeiras, segundo dados do Banco Central Europeu. No final de fevereiro, o número de bancos registados na praça do Luxemburgo era de 141 provenientes de 26 países de origem (ver quadro), com destaque para a Alemanha (com 26% do total). Portugal contava com sucursais da Caixa Geral de Depósitos e do Banco Espírito Santo, com uma participação de 25% por parte do Banco Comercial Português no Banque BCP SA e um escritório de representação do Banco Português de Investimento. O facto dos bancos domésticos serem uma minoria dá uma característica diferente à situação dos ativos financeiros geridos no Luxemburgo: “O sistema bancário é largamente formado por subsidiárias e sucursais de bancos estrangeiros, que, em caso de problemas de insolvência, se apoiarão nas casas-mãe, ou até o governo do país de origem terá de avançar na salvaguarda da sua solvência e da reputação dos bancos”, averte Fernand Grulms. O governo do Grão-Ducado teve de resgatar dois bancos no pico da crise financeira, o BGL BNP Paribas e o Banque Internationale à Luxembourg (BIL), mas fê-lo sem recorrer a qualquer pedido de resgate externo. O empréstimo a favor do BGL deverá terminar no final deste ano e o estado poderá vender a sua posição acionista se o negócio lhe permitir descer a sua pequena dívida pública externa de 25 para 21% do PIB.
A ideia de que a economia luxemburguesa é, apenas, gestão de capital financeiro não é correta, apesar do Luxemburgo ser considerado a 18ª praça financeira do mundo nas 79 que são analisadas pelo Global Financial Centres Index. No recente discurso sobre o “estado da nação”, Jean-Claude Juncker referiu que a “praça financeira representa 36% do PIB”. A diversificação da economia luxemburguesa passa pela exploração de outras fileiras, como a da siderurgia que dominou a economia do país até aos anos 1970, com o grupo mundial Arcelor-Mittal lá sediado, a dos audiovisuais (com o importante grupo RTL, o maior da Europa), dos satélites (com a sede do grupo SES Global, o maior operador do mundo), a logística (a Cargolux, um dos atores mundiais, cujos aviões são constantes no aeroporto), e o comércio eletrónico (com a centralização de operações europeias da Amazon, eBay e Paypal), recorda-nos Fernand Grulms. Apesar de não ter acesso ao mar, é um dos registos marítimos internacionais, desde 1991. Em virtude de um quadro legal e fiscal favorável, o Grão-Ducado pretende ser a plataforma de otimização, na Europa, para a gestão da propriedade intelectual ou de atividades de investigação e desenvolvimento.
O próprio sector financeiro é diversificado. As atividades de banca privada representam apenas 15% do valor acrescentado pelos serviços financeiros, ainda que seja o primeiro centro europeu neste segmento, graças à oferta de um conjunto de estruturas de património e financeiras específicas. A gestão de ativos e os fundos de investimento, que é o centro de gravidade da praça financeira, envolvem 2,4 biliões de euros. Há mais de 3800 fundos de investimento comercializados em 70 países. A praça do Luxemburgo é o primeiro centro europeu neste segmento e o segundo, à escala mundial, depois dos Estados Unidos. Mais recentemente, o Luxemburgo começou a posicionar-se como centro de competências para o capital financeiro islâmico na Europa. A própria Bolsa do Luxemburgo foi a primeira, na Europa, a cotar obrigações islâmicas (sukuk).
Ditar um modelo de negócio é inadmissível
A reação à recente ideia de “condicionar” o “modelo económico” dos países membros da zona euro é particularmente violenta entre os banqueiros luxemburgueses. Contzen exprime, com alguma diplomacia, o que a “rua financeira” pensa: “Nenhum estado tem o direito de decidir o modelo de negócio de um outro estado. A forma como os estados membros definem o seu modelo no seio de um quadro europeu regulador é uma prerrogativa própria. Nem a Alemanha nem qualquer outro país – europeu ou não – tem o direito de se meter no nosso modelo, tal como nós não damos lições a outros sobre os seus modelos de negócio ou os nichos de competência que exploram”. Por seu lado, Grulms ironiza, com alguma dureza: “Nós não dizemos aos nossos vizinhos se podem ter como especialização económica a produção e exportação de armas. Isso faz parte do seu modelo de negócio, nós não damos conselhos sobre isso”.
O tema da “mudança de modelo de negócio” foi introduzido recentemente pela chanceler alemã Ângela Merkel e pelo seu ministro das Finanças Wolfgang Schaueble a propósito de Chipre, mas a mensagem foi entendida como dirigida às praças financeiras da zona euro. O deputado alemão Joachim Poss, vice-presidente do SPD, partido social-democrata na oposição, foi ainda mais longe: “Nenhum modelo pode ser tolerado numa economia de mercado se infringe as regras de uma sã concorrência. Sem dúvida, que o Luxemburgo faz parte dos países com problemas”.
No Luxemburgo a “interpretação” diplomática das dissertações sobre o “modelo económico” dos países membros levou o ministro dos Negócios Estrangeiros do Grão-Ducado e vice-primeiro-ministro, Jean Asselborn, a uma reação, sem papas na língua acusando a Alemanha de prosseguir um projeto “hegemonista” na Europa. Berlim não tem “o direito de decidir sobre o modelo de negócio de outros países” e de os “estrangular a pretexto de assuntos técnicos financeiros”, disse aquele governante que foi presidente do Partido Socialista e que faz parte da coligação chefiada por Juncker que governa o Grão-Ducado desde 2004. A acusação de “hegemonismo” é forte e, por isso, os banqueiros são mais diplomáticos que o chefe da diplomacia: “Não sei avaliar se há geopolítica da parte de Berlim, mas constatamos, de facto, que, desde há algum tempo, os grandes países da Europa pretendem ditar as regras do jogo, muitas vezes em detrimento dos pequenos países”. Grulms também deita água na fervura: “No Luxemburgo não temos um sentimento antialemão. As relações políticas são excelentes. Damos pouca importância a este incidente”.
Uma coisa parece, no entanto, certa a Contzen: “Há atualmente uma tendência marcada para querer renacionalizar os mercados financeiros. O Luxemburgo não aderirá nunca a políticas que visam renacionalizar elementos do mercado interno e a introduzir elementos contrários ao espírito dos Tratados”. O banqueiro alemão chama os bois pelos nomes: “Isto é uma política protecionista que só pode levar a um resultado – o fim do mercado único, que é, contudo, um dos maiores sucessos da construção europeia”.
FICHA
LUXEMBURGO
# População: 525 mil habitantes
# Imigração portuguesa: 110 mil, segundo o consulado português; 85 mil, segundo o Statec (organismo de estatísticas do Luxemburgo); 1ª comunidade imigrante (os franceses vêm sem segundo lugar com 33 mil imigrantes)
# Migração transfronteiriça diária: 160 mil pessoas; 45% dos ativos
# População ativa maioritariamente estrangeira: 66%
# Línguas oficiais: luxemburguês, alemão e francês
# Língua de negócios: inglês
# Língua mais falada na imigração: português
# Organismos internacionais: sedes do Banco Europeu de Investimentos, do Tribunal de Justiça da União Europeia, do Tribunal de Contas Europeu e do European Financial Stability Facility (EFSF, no acrónimo inglês), o Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (FEEF), que funciona como veículo financeiro especial para os resgates dos países com crises de dívida soberana
# PIB (2012): 44,4 mil milhões de euros
#Previsões de crescimento: 1% em 2012; 2,3% em 2014; 1,9% em 2015 e 3,8% em 2016
# Objetivo de défice público em % do PIB de 0% em 2016 ou 2017 (foi revisto, pois inicialmente estava apontado para 2014)
# Dívida Pública em % do PIB: 25%
# Exportação de produtos e serviços: 170% do PIB
# Taxa normal de IVA em 15%, inalterada desde 1993 e a mais baixa da Europa juntamente com Chipre; vai ser alterada a partir de 2015
# Peso dos ativos financeiros em relação ao PIB: 22 vezes
# Classificação: 18ª praça financeira mundial
# Número de bancos: 141 de 26 nacionalidades
# Rácio de solvabilidade da banca: 17%
# Sector segurador: 300 entidades
# Tratados de dupla tributação: 61 países; mais 23 em negociação
# “Fábrica” de advogados de negócios: mais de 2000 estabelecidos
# Rating da dívida: triplo A
CASO II – Valletta não é Nicósia
“Um sistema bancário sólido e uma economia que não está em recessão e que tem baixo desemprego garante que não é necessária qualquer intervenção da troika”, diz o professor Josef Bonnici, governador do Banco Central de Malta, que reage, com algum espanto, à “colagem” a Chipre.
O rumor de que Malta “seria a próxima Chipre” começou a correr desde que o presidente do Eurogrupo, o ministro das Finanças holandês Jeroen Dijsselbloem, afirmou ao jornal “Financial Times” e à agência Reuters que Malta e Luxemburgo deveriam tirar “lições” do resgate a Chipre antes que os problemas lhes “batam à porta”. Mais recentemente, o jornal francês “Le Monde” publicou um estudo do banco Natixis que alegadamente indicaria que Malta teria muitas parecenças com Chipre, o que apontaria para um cenário provável de resgate suportado pelos próprios depositantes – um bail-in na linguagem da troika – no caso de esta intervenção se tornar necessária. As entidades oficiais em La Valletta, a capital do arquipélago, recusam inclusive a “interpretação” dada pelo “Le Monde” ao relatório de dez páginas publicado pelo “Flash Economics” da Natixis a 3 de maio. O próprio estudo do banco francês afirmava distinguindo Valletta de Nicósia: “Apesar de semelhanças assustadoras, a comparação não deve ser levada muito longe. Malta não é Chipre, por diversas razões”. A finalizar concluía que “uma reposição do cenário cipriota é improvável”.
O critério usado para comparar estas três plataformas financeiras da zona euro – Luxemburgo, Malta e Chipre – é o da hipertrofia do sector bancário em relação à economia. No caso de Malta, a banca valeria quase oito vezes o produto interno bruto (PIB), bastante menos do que no caso do Luxemburgo, mas um pouco mais do que no caso de Chipre (ver tabela). O uso simplista deste indicador é fortemente contestado em Malta tal como no Luxemburgo, o Grão-Ducado também “alvo” das palavras de Dijsselboem, uma situação que é abordada na edição deste mês da revista Exame.
Sistema bancário dual
“É preciso olhar para além desse critério”, afirma-nos o governador do banco central de Malta. A posição externa líquida positiva do sector financeiro em 2012 era confortável, de cerca de 140% do PIB, apesar de muito inferior à do Luxemburgo que se situava em 965%. O que contrasta com a posição externa líquida negativa do sector financeiro cipriota em 40% do PIB. O prémio de risco da dívida maltesa em relação ao custo de financiamento da dívida alemã a dez anos é inclusive inferior ao italiano e ao irlandês. A dívida soberana num total de 4,5 mil milhões de euros está em 86% em mãos de residentes, mais de metade dessa percentagem nas carteiras dos bancos domésticos. Há um oceano de diferença entre Malta e Chipre, ainda que as duas economias insulares partilhem o Mediterrâneo. “Além disso, o sistema bancário maltês é dual, na realidade, é fundamentalmente diferente do cipriota”, adianta Josef Bonnici. Por um lado, há os bancos que são “sistemicamente” importantes para a economia de Malta (que é a mais pequena economia da União Europeia, representando apenas 3,8% do PIB português e 0,08% do conjunto da zona euro) e, por outro, os bancos orientados internacionalmente. Estes últimos são 15 e captam fundos fora de Malta e investem-nos ou emprestam fora do arquipélago. “Muitas destas atividades são transações entre filiais ou sucursais da mesma holding ou banco. As ligações à economia local ou ao resto do sector financeiro doméstico é negligenciável”, refere o governador do banco central. Por seu lado, os ativos dos cinco principais bancos domésticos, malteses e subsidiárias estrangeiras – APS, Banif Malta (do grupo português Banif e de investidores locais, que iniciou operações em 2008), Bank of Valletta, HSBC Bank Malta e Lombard Bank Malta – valem 2,18 vezes o PIB, menos do que os 3,6 de média europeia. Segundo a Standard & Poor’s (S&P), num relatório de 23 de abril, nenhum dos bancos depende da ajuda de liquidez de emergência do sistema do euro e a exposição à dívida soberana ou à banca dos periféricos da zona euro é baixa. No entanto, a S&P e a Nataxis referem que a exposição ao sector imobiliário – que sofre a pressão da correção em baixa de preços – é elevada.
Falar de reestruturação da banca de Malta só pode ser fruto de desconhecimento da realidade, diz Bonnici. “O sistema bancário é saudável, está bem capitalizado, tem um nível de liquidez elevado e é lucrativo”, sublinha, adiantando os dados conhecidos internacionalmente e que têm sido referidos pela Comissão Europeia, por agências de notação como a Fitch e a S&P e pela Bloomberg. O rácio de adequação dos fundos próprios é de 53,3% enquanto a média europeia é de 14,1%. O rácio de liquidez, particularmente importante em períodos de crise financeira, é de 19,7%, superior aos 10% da média da zona euro.
Ameaça vem de Bruxelas
Um dos riscos potenciais para Malta – tal como para o Luxemburgo – vem, ironicamente, de dentro da própria União Europeia e da pressão em relação ao que a chanceler alemã Angela Merkel e o seu ministro das Finanças Wolfgang Schauble chamaram, durante a recente crise de Chipre, de “modelo de negócio” ligado ao papel de plataformas financeiras.
Essa intromissão nos “modelos de negócio” teve inclusive uma reação dura por parte de Jean Asselborn, o ministro dos Negócios Estrangeiros do pequeno Grão-Ducado do Luxemburgo que acusou a Alemanha de hegemonismo. Berlim não tem “o direito de decidir sobre o modelo de negócio de outros países” e de os “estrangular a pretexto de assuntos técnicos financeiros”, disse então Asselborn.
Malta sentiu, também, essa realidade geopolítica, que é contada na primeira pessoa pelo ministro das Finanças maltês, o professor Edward Scicluna. Poucos dias depois de ser empossado no lugar, na sequência das eleições de 9 de março ganhas pelo Partido Trabalhista, o novo ministro teve o seu batismo nas reuniões do Eurogrupo, no pico da crise de Chipre.
A telenovela desse recente episódio provocou em Scicluna uma profunda marca, que exprimiu num artigo no jornal “The Times of Malta” logo no dia 19 de março, com o título: “Chipre: uma lição para a vida”. Nesse artigo, o ministro comentava que “a tudo o representante do governo cipriota deu o seu ‘acordo’, pois com uma pistola apontada à cabeça, teve de ser naturalmente de uma cooperação fora do comum. Mas, tiveram de passar 10 longas horas até que o corpo e a alma do ministro cipriota ficassem exaustos o suficiente para dar o seu consentimento. No exato momento em que isso aconteceu Schauble ordenou que todas as transferências bancárias de e para os bancos cipriotas cessassem imediatamente”.
QUADRO
Dimensão do sector financeiro na economia
(Valores em múltiplo do PIB)
Luxemburgo — 21,74
Malta – 7,88
Irlanda – 7,18
Chipre – 7,16
Média europeia – 3,6
Fonte: Wall Street Journal; Banco Central de Malta
FICHA
Malta
(2012)
População: 417 mil habitantes;
PIB (a preços correntes): €6,3mil milhões (3,8% do PIB português);
PIB per capita: €16.242 (104% do PIB per capita português);
Desemprego: 6,4% (compara com 15,7% em Portugal);
Dívida pública (bruta) em % do PIB: 72,1% (compara com 123,6% para Portugal);
Défice público em % do PIB: 3,3% (compara com 6,4% para Portugal)
Balança externa: Excedente de 0,29% do PIB (compara com défice de 1,5% para Portugal)
Independência: 1964
Adesão à União Europeia: 2004
Integração na zona euro: 2008
Fontes: Eurostat; FMI, DataMapper
CASO III – Eslovénia quer evitar intervenção da troika
A Eslovénia evitou no último minuto um pedido iminente de resgate a Bruxelas ao conseguir a 2 de maio colocar uma emissão de dívida de 3,5 mil milhões de dólares (o equivalente a cerca de 2,6 mil milhões de euros) a cinco e a dez anos. A jovem república criada em 1991 venceu a “trepidação” e o mercado dos rumores, diz Joze Damijan, professor da Faculdade de Economia da Universidade de Liubliana.
“O novo governo chefiado por Alenka Bratusek colocou um esforço tremendo para conseguir lançar essa emissão de dívida em moeda estrangeira (em dólares). A emissão em si não estava em risco pois há imensos fundos nos mercados financeiros dos Estados Unidos procurando aplicações rentáveis, e a Eslovénia com um défice público controlável e um rácio de dívida pública em relação ao PIB pouco superior a 50% é uma boa oportunidade de investimento”, refere-nos Damijan, um dos bloguers eslovenos mais lidos internacionalmente.
O governo de centro-esquerda de Bratusek substituiu em finais de março o anterior executivo de direita, que caiu em virtude de ter perdido apoio parlamentar maioritário.
Para o economista esloveno é fundamental que o país “evite o cenário troika”. “Tal intervenção significa a perda de soberania económica e implica depois uma década para se tentar mitigar os danos colaterais que ela provoca em termos de depressão e de crescente desemprego”, sublinha Damijan, que preferiria que a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu criasse uma “equipa pré-troika” para apoiar tecnicamente o governo e garantir “a transparência e eficiência da reestruturação do sector bancário e empresarial”.
O défice público este ano poderá subir para 5,1% do PIB e, se houver uma recapitalização dos bancos, esse valor pode subir para 7,8%, o que poderá levar a Comissão Europeia a penalizar o país no âmbito dos procedimentos por défice excessivo. No ano passado o défice desceu para 4% e deveria prosseguir a trajetória descendente. “Mas como também a Espanha incorre no mesmo problema, a questão é politicamente complicada”, diz o nosso interlocutor.
Entretanto o governo de Bratusek aprovou um pacote de ajustamento orçamental dia 9 de maio com vista a resolver o problema de défice excessivo, documento que enviou para Bruxelas e será apreciado na reunião do Eurogrupo de amanhã (13 de maio).
O pacote designado de “Programa de Estabilização 2013” é uma obrigação no âmbito do chamado semestre europeu, a cumprir anualmente em abril, e tem em conta, no caso da Eslovénia, um procedimento de défice público excessivo, acima de 3% do PIB. No ano passado o défice público desceu para 4% do PIB, mas este ano poderá subir para 5,1%, e, se houver uma recapitalização dos bancos, esse valor poderá disparar para 7,8%.
Pacote de ajustamento até 2015
Neste pacote, o governo de Bratusek estabeleceu três prioridades de curto e médio prazo: resolver o problema da situação do sector bancário que necessita de uma recapitalização e reestruturação; baixar a dívida (que em 2012 fechou em 54,1% do PIB, comparativamente menos de metade do caso português, com 123,6%) que poderá atingir os 60% este ano, e reestruturar o sector empresarial do estado e o sector bancário público.
No campo do sector bancário, o objetivo é transferir, até setembro, por fases, os ativos tóxicos para um banco tóxico (bad bank), já criado, no papel, o DUTB, que para adquirir esses ativos fará uma emissão de obrigações até um total de 4 mil milhões de euros, garantida pelo Estado. A recapitalização dos bancos deverá chegar a 900 milhões de euros até 31 de julho.
Em virtude desta reestruturação bancária, a dívida do país subirá de 54,1% no fecho de 2012 para 60% no final deste ano, devendo regressar depois gradualmente ao nível dos 55%, na sequência da venda ou liquidação dos ativos tóxicos do DUTB.
No campo orçamental, o objetivo é que o défice público atinja os 3% do PIB em 2015, e não, este ano, como estava previsto. Mais dois anos, em relação ao que a Comissão Europeia pretendia. O objetivo de equilíbrio das contas públicas é apontado para 2017.
O atual pacote visa sobretudo o lado da receita pública. Um segundo pacote será apresentado no final do ano, e visará sobretudo a redução permanente do gasto público.
As principais medidas imediatas pelo lado da receita pública são as seguintes: aumento da taxa normal de IVA de 20% para 22% a partir de 1 de julho (caso português está em 23%) e da taxa mais baixa em 1 ponto percentual; suspensão do processo de redução gradual do IRC, que havia sido introduzido no ano passado; subida dos impostos sobre as lotarias e em algumas bebidas com açúcar; e aumento das taxas de justiça.
Está, também, previsto um plano de privatização do sector empresarial do Estado, e pelo menos de um banco público.
Até final do ano, o governo vai negociar com os sindicatos medidas adicionais de redução da despesa pública e continuarão as descidas para fazer descer o conjunto da despesa com pensões.
No caso destas medidas de corte da despesa falharem, o governo introduzirá, a partir de 1 de janeiro de 2014, um imposto “de crise”. A partir de 2014 vigorará um imposto sobre a propriedade.
Será transportada para a legislação nacional, a regra de ouro orçamental da zona euro.
Ainda na zona de perigo
Contudo, o preço do financiamento é ainda elevado, apesar de estar ultimamente abaixo da linha vermelha dos 7%. “As taxas de remuneração de 4,85% nas obrigações a cinco anos e de 6% nas obrigações a dez anos pagas nesta operação no «último minuto» são – quando comparadas com Itália e Espanha – elevadas. Continuar a pedir emprestado pagando estes juros é insustentável, sobretudo tendo em conta a atual recessão”, adverte o economista. A situação económica está marcada por uma recessão, com uma contração de 2,3% do PIB no ano passado, e o Banco central do país (Banka Slovenije) alertou que este ano poderá haver uma contração adicional de 1,9%. Com o novo pacote de ajustamento, a recessão poderá subir para 3%.
Para Damijan, a Eslovénia só escapa à “zona de perigo” quando os juros de dívida no mercado secundário estiverem “a par com os das obrigações italianas, que estão abaixo de 4%, o que também fará baixar as taxas de remuneração nas emissões no mercado primário ao nível de Itália”. Os juros das obrigações eslovenas (denominadas em dólares) a 10 anos no mercado secundário desceram entre 29 de março e 30 de abril, de 6,06% para 5,87%, segundo dados da investing.com, e continuam em trajetória descendente em maio aproximando-se de 5,5%. A 16 de abril fecharam perto de 7%, o limiar vermelho, e no dia seguinte atingiram um máximo intradiário de 7.05%, o que espoletou, então, os rumores.
O problema renasce no próximo ano. “Grande parte do endividamento realizado a partir de 2008 foi de médio prazo. Deste modo, a pressão nos próximos anos vai ser elevada. Em 2014, a Eslovénia vai ter de refinanciar 3,5 mil milhões de euros que vencem, isto é 10% do PIB, e necessitará de financiar o défice em mais mil milhões de euros. O primeiro vencimento ocorre a 2 de abril do próximo ano num montante de 1,5 mil milhões de euros em obrigações a cinco anos. O que colocará o país novamente sob pressão massiva dos mercados financeiros”, salienta Damijan.
Crise bancária no centro da turbulência
A Moody’s decidiu o corte de notação da dívida para o nível de “lixo financeiro” em virtude da situação de crise bancária no país. “O governo anterior negligenciou o problema entre 2009 e 2011. Agora, o problema é mais difícil de tratar, mas este ano é crucial para resolver o problema sem intervenção externa”, diz Damijan. Alenka Bratusek afirmou que a recapitalização da banca era “a prioridade número um” do seu governo. As estimativas apontam para uma recapitalização entre 1 a 1,5 mil milhões de euros para sanear os três maiores bancos públicos do país, o NLB, o Nova KBM e o Abanka, que detêm perto de 50% do mercado.
Um banco para o lixo tóxico (bad bank, na gíria dos resgates do sector bancário) foi criado no papel, o Bank Asset Management Company, mas até junho terá de ser concretizado. Segundo estimativas do governo, há cerca de 7 mil milhões de euros em empréstimos de duvidosa cobrança concedidos pela banca a empresas e famílias. Cerca de 4 mil milhões de euros, 11,5% do PIB, poderão ser “deslocados” para o bad bank. Os fundos de recapitalização poderão ser obtidos com a privatização de um banco, o Nova KBM, depois do saneamento financeiro, e de outros ativos do Estado. O nosso interlocutor é claro: “Para o próximo ano, com a continuação da recessão, os ativos problemáticos dos bancos podem subir para 20% a 25% do balanço, tornando praticamente impossível resolver-se o problema internamente”. Joze Damijan é de opinião que o governo terá de privatizar os três bancos, e não só um. Em Bruxelas correm rumores de que o Banco central esloveno não está a cooperar com o novo governo e que há risco de falta de imparcialidade por parte do supervisor na reestruturação bancária.
Também, ainda, não é claro o plano de privatização de entidades do sector empresarial do estado, que conta com grandes empresas como a Telekom Slovenije (que domina o mercado de telecomunicações e se expandiu nos Balcãs), a companhia de seguros Zavarovalnica Triglav (que lidera o mercado) e a Petrol (que domina o sector gasolineiro e se expandiu nos países vizinhos que eram parte da Jugoslávia e ainda na Áustria, Albânia e Chipre).
FICHA
Eslovénia
(2012)
População: 2 milhões de habitantes;
Criação da República: 1991 (no âmbito do desmembramento da Jugoslávia)
PIB (a preços correntes): €35,47 mil milhões (21,5% do PIB português);
PIB per capita: €17.254 (110% do PIB per capita português);
Desemprego: 9% (compara com 15,7% em Portugal);
Dívida pública (bruta) em % do PIB: 54,1% (compara com 123,6% para Portugal);
Défice público em % do PIB: 4% (compara com 6,4% para Portugal)
Balança externa: Excedente de 2,3% do PIB (compara com défice de 1,5% para Portugal)
Adesão à União Europeia: 2004
Adesão ao euro: 2007
Fontes: Eurostat; FMI, DataMapper
CASO IV – Holanda ainda tem margem de manobra
Mas os riscos espreitam. A dívida hipotecária das famílias é elevada e o sector bancário é vulnerável. O governo atrasou o plano de austeridade que vai ser reavaliado em setembro.
“Ainda que seja visível que a Holanda enfrenta alguns problemas económicos – a contração do produto interno bruto (PIB) em 2012 e previsivelmente em 2013, a probabilidade de rever em baixa o crescimento de 1% projetado para o próximo ano, e um desemprego que subiu para 8,1%, um máximo em 18 anos -, creio que é pouco provável que venha a constituir um problema de vulto para a zona euro”, afirma Pedro Robalo, professor na Universidade de Amesterdão, doutorado em filosofia económica pelo Instituto Tinbergen. Robalo, licenciado em Economia pela Universidade de Lisboa e a viver na Holanda desde 2008, conclui que este país, um dos quatro que resta na zona euro com notação de crédito triplo A, ainda tem “uma considerável margem de manobra”.
A Holanda veio para a ribalta este mês quando diversos analistas financeiros europeus começaram a prever que seria o primeiro país do “centro” na zona euro a entrar numa crise que poderia colocar em causa a moeda única, desviando a zona vermelha dos “periféricos” para o coração do eixo de alianças da Alemanha. É um dos 16 países da União Europeia com uma situação de défice excessivo, como esta semana recordou a Comissão Europeia (ver caixa).
Cenário pessimista possível
Os pontos fracos apontados são vários. O incumprimento do procedimento de retificação do défice orçamental que continua acima de 3%, com previsões do Fundo Monetário Internacional (FMI) para ficar por 3,4% este ano e inclusive subir para 3,7% no próximo ano. Uma dívida das famílias superior a 250% do PIB, mais alta do que a da Irlanda e mais do dobro da média da zona euro e de Portugal (100,5% do PIB em finais de 2012), o que foi sublinhado este mês pela análise da Holanda pelo FMI ao abrigo do artigo IV. O rácio entre empréstimos concedidos pelos bancos e os depósitos é de 183%, mais do dobro do caso norte-americano e muito acima dos 100% no caso da Alemanha. O que torna o sector bancário holandês muito vulnerável aos humores do mercado de dívida quando precisa de se refinanciar. O primeiro sinal de borrasca foi a necessidade do governo de Haia nacionalizar o quarto maior banco local, o SNS Reaal, em fevereiro deste ano.
Uma situação inesperada pode ocorrer, alerta-nos Ewald Engelen, professor de Geografia Financeira na Universidade de Amesterdão e um dos blogueres holandeses mais destacados. “Há sempre a possibilidade da Holanda entrar na zona vermelha. Isso pode ser causado pelo efeito recíproco entre bancos vulneráveis, famílias muito alavancadas na dívida hipotecária, em virtude da moderação forçada dos salários, e políticas bastardas de austeridade que provocam recessão. Estas políticas tornam impossível às famílias desalavancarem a sua situação sem prejudicarem a economia”, diz Engelen com alguma dureza. O que o leva a “imaginar um cenário possível” de problemas em cadeia de insolvência em algum dos grandes bancos, uma perda da notação de triplo A, um disparo na desconfiança dos investidores internacionais e uma subida do custo de financiamento da dívida.
O paradigma da frugalidade
No entanto, Pedro Robalo elenca os pontos fortes: o país detém um elevado nível de poupança na ordem de 26% do rendimento disponível (uma taxa que é mais do dobro do caso português); o montante de fundos de pensões é de 150% do PIB; o crédito hipotecário mal parado é ainda baixo, ainda que possa subir à medida que o nível de desemprego vem aumentando; os custos de financiamento da dívida, ainda que em alta (os juros da dívida a dez anos no mercado secundário subiram de 1,54% a 2 de maio para 1,85%), continuam abaixo dos pagos por França e pelos Estados Unidos, que estão acima de 2%, e o nível de dívida pública em relação ao PIB estava em 71,2% no final do ano passado, abaixo da média de 90,6% para o conjunto da zona euro. O país teve, em 2012, um excedente externo de mais de 9,1%, maior inclusive que o da Alemanha, e com o FMI a projetar que suba ainda mais este ano e no próximo, e uma posição líquida internacional de investimento positiva de mais de 40%, superior também à da Alemanha.
Mas, neste mar de virtudes que fazem inveja a Portugal, o problema está no “paradoxo da frugalidade” popularizado por Keynes, diz-nos Eric J. Bartelsman, professor na Faculdade de Economia da Universidade Vrije em Amesterdão. “Nós precisamos de políticas credíveis de longo prazo que levem as famílias a não optar por poupanças excessivas. Nos últimos três anos de crise, os holandeses têm aumentado significativamente a sua riqueza líquida e mantêm enormes ativos em pensões. O eleitorado holandês pensa que ser frugal é bom. Falta que os políticos e as famílias percebam o paradoxo da frugalidade. O sentimento dos consumidores permanece baixo e o comportamento de poupança pelas famílias manterá o crescimento em níveis baixos”. Bartelsman é de opinião que “a União Europeia deve defender políticas que levem as famílias holandesas a começar a gastar de forma a aliviar os desequilíbrios que existem com o sul da zona euro”.
Ewald Engelen, por seu lado, chama a atenção para o excedente externo excessivo por parte da Holanda: “É mais um problema e não uma solução a nível interno, com efeitos negativos na despesa das famílias, tal como a nível do conjunto da zona euro, alimentando os desequilíbrios conhecidos. Foi produto de trinta anos de políticas de «lixem o meu vizinho», alimentando o poder competitivo do sector exportador”. O “milagre” exportador holandês gerou efeitos negativos, internos e externos, com que o governo de coligação liberal-trabalhista tem de lidar, agora, num contexto europeu recessivo.
“Faca” da austeridade reavaliada em setembro
A Holanda tem vindo a implementar um programa de disciplina orçamental desde 2010 e os défices públicos entraram numa trajetória descendente – de 5,6% do PIB em 2009 para uma previsão de 3,3% ou 3,4% este ano. Mas, como continua acima do limiar de referência europeu dos 3%, o procedimento de défice excessivo imposto pelo Conselho Europeu prossegue. A Comissão Europeia, esta semana, propôs a prorrogação até 2014 do ajustamento para a descida do défice até 2,8%. Na mesma resolução, a Comissão propõe a extensão do ajustamento em Portugal, Eslovénia e em França até 2015 e em Espanha até 2016, no que respeita a membros da zona euro. O ministro das Finanças holandês, Jeroen Dijsselbloem, que acumula a pasta de presidente do Eurogrupo, defendeu, na visita que fez esta semana a Portugal, “mais tempo” para o ajustamento português, certamente a pensar no seu próprio caso.
Em virtude do prosseguimento da política de austeridade, o governo do primeiro-ministro Mark Rutte caiu em abril do ano passado, com o partido populista de direita Geert Wilders a retirar-lhe apoio parlamentar. O novo governo de Rutte, saído de eleições antecipadas em setembro, mudou de coligação e aliou-se com o Partido Trabalhista, tendo em outubro aprovado um plano de cortes de €16 mil milhões até 2017. Para 2013 foram já especificados cortes na ordem dos €4,3 mil milhões, mas o governo atrasou o processo. O próprio Dijsselbloem considerou “muito, muito pouco razoável espetar a faca ainda mais profundamente” e a aplicação dos cortes orçamentais ficou de ser reavaliada em setembro. De qualquer modo, em outubro, a Comissão Europeia apreciará o que foi feito no sentido de poder cumprir a meta de sair do limiar dos 3% de défice no final do próximo ano. O próprio FMI recomendou no relatório de maio que “a política orçamental seja mais flexível, focando-se nas metas estruturais, e deixando os estabilizadores automáticos operar plenamente”.
FICHA
Holanda
Dados 2012
População: 16,8 milhões
PIB per capita: €32.847 (mais de duas vezes o PIB per capita português)
PIB: €550,4 mil milhões (3,5 vezes o PIB português) – 5ª economia da zona euro
Crescimento do PIB: recessão de -0,88% (-3,2% para Portugal); previsão de quebra de 0,5% em 2013
Desemprego: 5,3% da população ativa (15,7% em Portugal); 8,1% em março de 2013
Dívida pública bruta em % do PIB: 71,2% (123,6% em Portugal); projecção de 74,5% em 2013 e de 75,8% em 2014
Défice orçamental em % do PIB: 4,1% (6,4% em Portugal)
Excedente externo em % do PIB: 9,1% (Portugal com défice externo de 1,5%); projecção de 9,2% para 2013 e de 9,6% para 2014; ou seja continuação do aumento do excedente excessivo
Posição internacional de investimento líquida positiva (2011): 41% do PIB (Portugal tem uma posição líquida negativa de 103% do PIB, liderando o grupo com a pior situação)
Notação da dívida: triplo A (Portugal está na zona de investimento especulativo)
Fontes: WEO Database, FMI; Quaterly Report vol 11, nº3, 2012, Comissão Europeia; Datosmacro.com; FMI, Article IV Consultation.